Escute o álbum:
— Meme, você é músico?
Perguntou o Rei.
— Não, Roberto, eu não sou músico.
Então, o Rei olhou bem e, com a mão no seu ombro, retrucou:
— Mas você é muito mais musical do que muito músico que eu conheço.
A demonstração de admiração e reconhecimento aconteceu em 2012, nos bastidores do especial de Natal de Roberto Carlos.
E até hoje, reverbera na memória de Marcello Mansur, mundialmente conhecido como DJ Meme, que reflete: “existem pessoas que são musicais, mas que, por alguma razão, não se aproximam de um instrumento.
Algumas se tornam DJs e outras, engenheiros de gravação ou mixagem. São tão musicais como um músico.
Ou até mais — essa é que é a grande verdade”, afirma.
O começo
A iniciação de Meme no universo da música originou-se na adolescência, quando começou a fazer montagens e colagens, recombinando faixas, trechos, sons e batidas, utilizando apenas o seu gravador de fitas cassete.
E, das festinhas no bairro, quando já colocava a turma pra dançar, ainda sem saber o que era discotecar e o que era ser DJ, caminhou a passos largos, anos depois, para produção de remixagens de hits do pop e do rock brasileiro da década de 80.
“Comecei a fazer remix em 85.
Meu trabalho obteve uma visibilidade muito maior quando entrei para o rádio, remontando as músicas que iam para a grade da programação. Inclusive, fiz remix de música dos Titãs (Polícia), de Marina (À Francesa), Capital Inicial e muitos outros.
Percebi que podia interferir na música fazendo música. Fui avançando e acabei chamando a atenção das gravadoras. Somente depois, por causa do remix, é que a produção de discos veio.
E o remix só veio por causa da discotecagem.
E a discotecagem só existe na minha vida por causa do amor pela música, que eu nutri desde moleque. Música era o meu jogo de bola, o meu jogo de botão. Só ouvia música e mais nada”, relembra.
A carreira
Paralelamente à bem-sucedida trajetória de DJ e remixer internacional, que começou e que se estende até hoje, a produção musical passou a ocupar, a partir dos anos 90, um espaço substancial na carreira do carioca Marcello Mansur. O raro crossover entre as atribuições de DJ e produtor, uma combinação de atividades profissionais que não é muito comum neste meio, propiciou-lhe números impressionantes: são 23 discos de ouro, 15 de platina e 3 de diamante, conquistados nos trabalhos com Lulu Santos, Gabriel O Pensador, Claudinho & Buchecha, Barão Vermelho e Kid Abelha, além de dezenas de remixes realizados para alguns dos principais nomes do pop internacional (Shakira, Mariah Carey, Des’ree, Gloria Estefan, Dido e Toni Braxton).
Além de projetá-lo, a produção musical abriu novos horizontes, viabilizando, também, outra necessidade vital em termos de realização artística: fazer sua própria música e gravar seus próprios álbuns. O marco inicial dessa jornada ocorreu em 1999, com “Meme E Eles”: “Meu primeiro disco foi feito quando eu estava num momento de ebulição entre artistas e gravadoras, produzindo vários trabalhos. Eu quis celebrar isso — era um encontro de amigos, era uma galera se juntando para fazer música”, recorda-se.
Numa interessante comparação entre o supracitado “Meme E Eles” e seu mais recente projeto, Marcello nos esclarece: “´Som Bacana!´ é o álbum que eu sempre quis fazer, é baseado em tudo que escutei antes de criar a minha própria música. Minha mãe tinha uma pilha de LPs de Gal, Simone, Chico Buarque, Maísa e Maria Bethânia em nossa casa. Já meu pai ouvia Charles Mingus, Deodato, Marcos Valle, João Gilberto e muito Tom Jobim. Porém, ´Som Bacana!´ também têm as influências do gênero que me levou pra música. Eu estava vivendo no olho do furacão da disco music, na época. Ficava ouvindo aquelas harmonias e arranjos incríveis. Qualquer garoto da minha idade, nos anos 70, tinha dois caminhos a seguir: disco music ou rock’n’roll. Naturalmente, eu fui para a disco”.
O álbum
“Som Bacana!” é um trabalho elaborado sob critérios técnicos e artísticos bem definidos, que repassam a bagagem musical de Meme, alinhada à sua determinação de se reinventar. A experiência adquirida nos estúdios, onde lança mão das mais avançadas técnicas de gravação, edição e mixagem, associou-se ao auxílio luxuoso de feras do cenário da música pop e instrumental, como Lulu Santos; Marcos Valle, Lincoln Olivetti; Celso Fonseca, Cris Delanno; Adora; Deise Cipriano; Hanna Kimelblat, Danny Losito, Vincent Montana Jr, Ivan Conti (Mamão), Alex Malheiros, Liminha; Armando Marçal; David Feldman; Kassin; Alex Moreira; Jesse Sadoc, Marcelo Martins, Max Vianna e Marlon Sette, dentre muitos outros.
Meme nos revela detalhes de como funcionou seu processo criativo nesta empreitada: “A gente sabe, o computador não é um instrumento convencional, mas é o meu instrumento para fazer música e, através dele, utilizo todas as ferramentas que possuo. Sei que pareço controverso, mas gosto de usar o computador para fazer alguma coisa soar ´não eletrônica´. E ´Som Bacana!´ é exatamente isso, um disco ´não eletrônico´ onde tenho 37 músicos tocando com uma sonoridade que foi pensada e burilada. Precisei de coragem e tempo para aprimorar minha técnica, conhecer pessoas com quem queria trabalhar e entender como produzir música com minhas influências iniciais, incorporando também a soul music. Comecei a rascunhar e, dos rascunhos, o disco foi saindo. É bem diferente do que normalmente faço. E, como não era uma encomenda, eu não tive pressa. Levei um ano para produzir este álbum”.
A massa sonora de “Som Bacana!” pressiona e impressiona, tem peso, tem bossa e balança o coreto – é coisa de quem persegue a melhor fidelidade de áudio possível e de quem se importa com o prazer que isso traz. Ao conjugar suas habilidades no mouse com a vasta cultura musical, Meme se reafirma não apenas como o mestre do remix, mas também, como um grande engenheiro de mixagem. Em seus domínios, dispondo do tempo que necessitou, concebeu um disco artesanal, orgânico e heterogêneo, coeso e diversificado, moderno e atemporal, com repertório, temas, arranjos, timbres e beats que remetem às estéticas sonoras e autorais da música pop de diversas épocas. E que som…
Outro aspecto que salta aos ouvidos é a oportuna aplicação de uma mentalidade difícil de se colocar em prática na produção musical, aquela que diz que “menos é mais”. Porém, como saber até onde ir na instrumentação de um arranjo? Como chegar na melhor estrutura de uma canção? Como não cometer excessos? Para isso, a resposta é: vivência, intuição e bom senso – tudo conjugado. Não por acaso, são atributos que Marcello Mansur tem de sobra, que fazem com que cada faixa tenha apenas os elementos sonoros de que necessita para acontecer. Os arranjos são precisos e econômicos – não há vocais, acordes ou notas sobrando ou faltando. “Som Bacana!” está em plena forma.
As faixas
Um dos mais respeitados executivos da indústria fonográfica, Andre Midani, afirmava categoricamente que um projeto bem-sucedido começa pelo repertório. Meme, certamente, assimilou as sábias palavras de Andre Midani.
Como se fosse uma minissérie, o repertório de “Som Bacana!” retrata em cada capítulo ou melhor, em cada faixa, uma ideia, um instante ou um evento da trajetória de Meme. São dez fonogramas (mais duas faixas bônus) vestidos de luxo sonoro e timbrístico, algo que só vivência e muito trabalho proporcionam. Vamos a repertório:
01) “Maria Fumaça”: tema de abertura da telenovela “Locomotivas”, de 1977. O mega clássico instrumental da Banda Black Rio, liderada por Oberdan Magalhães, apresentou ao mundo sua mix arrasadora de samba, soul, funk e jazz. Aqui, Meme optou por uma releitura mais jazzy ainda, que serve como entrada para o cardápio musical que virá a seguir. Destaques para os grooves demolidores de André Vasconcelos (baixo acústico) e Tuto Ferraz (bateria).
02) “Estrelar”: composição dos gigantes Marcos Valle, Paulo Cesar Valle e Leon Ware, este “brazilian funk” frequenta as pistas de dança desde seu lançamento, em 1983. Obviamente, Meme não perderia a oportunidade de fazer a sua versão desta pérola do parceiro e amigo Marcos Valle. Destaques: a interpretação solar de Cris Delanno, o incrível balanço de um dos maiores trombonistas do país Marlon Sette, a consistência sólida da linha de baixo de Daniel Mansur — encontro fortuito, mas inevitável, do filho com o pai (o produtor do disco). O time da sessão rítmica também contou com o formidável Armando Marçal, na percussão.
03) “Calçadão”: electro bossa chique, com cara de final de tarde num lounge em Copacabana, no Rio, de autoria de Meme com a cantora e compositora Cris Delanno (que também canta na faixa) e o tecladista e produtor, também mestre dos estúdios, Alex Moreira, do Bossacucanova. Ecos do cultuado Serge Gainsbourg no vocal de Leo Cuenca.
04) “Paraíso”: Meme prossegue na sua verve electro bossa chique, com a participação de Hanna Kimmelblat no vocal. O arranjo, que traz um belíssimo desenho harmônico, é de Jesse Sadoc, especialista do flugel horn e do trumpete, que aqui conta com outra fera dos sopros: Marcelo Martins (flauta).
05) “Fonseca Rhyme”: tema curto, econômico e elegantíssimo, interpretado por Celso Fonseca, cantor e compositor desta faixa, um dos nomes mais relevantes do violão e da guitarra brasileira de sua geração. De quebra, o groove incomparável de Mr. Marcos Kostenbarder Valle no piano elétrico Fender Rhodes.
06) “Morena de Ipanema”: letra de Nelson Motta, musicada por Meme, interpretada por Deise Cipriano, ex-vocalista do grupo Fat Family. No alicerce rítmico deste delicioso pop soul, está o magistral Jimmie Wiliams, que alinhavou antológicas linhas de baixo de hits do soul e da disco music (cheque “Ain’t No Stoppin’Us Now”, de McFadden e Whitehead, de 1979) e acompanhou nomes, como O’Jays (trio vocal do chamado soul da Filadelfia), Teddy Pendergrass e Patti Labelle.
07) “Planadores”: composição de Lulu Santos, Celso Fonseca e Marcos Valle (presentes nesta gravação). O groove, arrasador, ficou a cargo de dois integrantes da seleção brasileira do balanço e do suingue: Ivan Conti, o Mamão (bateria), e Alex Malheiros (baixo), do Azymuth. Presente aqui, traços do soft pop dos anos 60. Atenção no piano de Marcos Valle, que toca sozinho no final. E faça chuva ou faça Sol, Lulu Santos, claro, segue estraçalhando no vocal.
08) “Diga Que Sim”: composição de Meme e Gabriel Moura, este petardo sônico remete aos hits cativantes dos grupos vocais femininos da era pré Beatles, os “girls groups” (The Ronettes, The Shirelles, The Supremes, etc) que estouraram na parada da Billboard, na década de 60. Não há como não se render à performance da jovem cantora paulistana Adora, que despontou no The Voice, anos atrás. Outros destaques: baixo e guitarra do mega producer Liminha e os teclados de Jorjão Barreto (ex-Banda Black Rio), que completam a onda sessentista. Absolutamente dançável.
09) “Femme Fatale”: tema arrasa quarteirão de pista, com os ares das festas de Ibiza, parceria do DJ italiano Danny Losito, com Meme e o cantor e compositor inglês Kareem Shabazz. Destaque: o violão sambossa de Max Vianna.
10) “Eva (interlude)”: homenagem de Meme ao seu ídolo máximo, o mago dos estúdios do Rio de Janeiro, Lincoln Olivetti. Meme conta que, num bate papo com o mestre, revelou seu desejo de botar as mãos nas gravações originais de “Eva’, clássico do pop soul carioca de 1982, para fazer um remix dessa faixa. Lincoln Olivetti afirmou que as fitas multitrack não existiam mais. Porém, ofereceu-se para regravar as partes de teclados que tocou em “Eva”, num formato que Meme pudesse reutilizá-las como e quando quisesse. Bingo! O material foi regravado e devidamente guardado. Meses depois, o mestre partiu deste planeta. Esta faixa é Lincoln Olivetti em pessoa. Uma preciosidade.
“Som Bacana!” não é somente um dos projetos discográficos mais interessantes do pop brasileiro de 2022. É também um álbum fácil de gostar e de se divertir. É a celebração de Meme, ao lado de seus parceiros e amigos. Mas também é, sobretudo, um reencontro com as matrizes, sons, discos e influências que o inspiraram na pavimentação de sua própria história profissional. “Música é o meu idioma”, reitera Meme. Então, vamos lá: aumente o volume e aprecie sem moderação.