Uma das obras-primas do casal – que chega amanhã (6) à UMusic Store – “Rita e Roberto” (1985) mistura São Paulo, temas sombrios, extraterrenos e inspirações da sétima arte.
“Aqui estamos nós/ Turistas de guerra/ Bizarros casais/ Restos mortais do Ibirapuera”.
Os versos iniciais de “Vírus do amor” – com toda a introdução densa – confirmam: o disco “Rita e Roberto”, de 1985, não seguia qualquer fórmula.
Pelo contrário, um Rock-Pop-Dark-Deprê-Extraterreno dava o tom.
Esse tom começava já na capa: o casal, em branco e preto e sem sorrisos, aparece em uma cena soturna, fotografada por Miro e com direção de arte de Felipe Taborda, na estação do Pari, região central de São Paulo.
Além do clima mais pesado, a capa entrega outras duas características – talvez as mais marcantes do disco: a primeira é que as músicas são cinematográficas num nível dificilmente alcançado; a segunda é o espírito de São Paulo.
É um disco urbano, cheio de referências à cidade natal de Rita Lee.
E não podia ter sido mais perfeito.
A combinação dark + cinema + São Paulo presenteou o universo com um dos melhores discos do rock/ pop.
Frequentemente apontado por Roberto como um de seus trabalhos preferidos, o álbum foi feito sem qualquer pressa.
Rita e Roberto passaram seis meses em dedicação total ao disco.
Trancados no estúdio que a gravadora havia feito para o casal, em São Paulo, sem pressão e nem data limite para cumprir.
E se jogaram nas demos.
Fizeram, em casa e no estúdio, diversas fitas de todas as músicas do disco – e até de algumas que não entraram no LP.
Elas foram evoluindo, até se tornarem as canções que conhecemos.
Com o engenheiro de som, Moogie Canazio, Rita e Roberto registraram tudo e lapidaram cada música.
É nítido, aliás, o papel de Moogie na captação da grandiosa qualidade técnica de som durante o processo de gravação.
“Vírus do amor”, a faixa de abertura e que já trazia a bateria eletrônica LinnDrum, foi uma das primeiras músicas do mundo a falar sobre AIDS.
Na época, o vírus ainda não tinha sido denominado HIV (o que aconteceu em 1986) e Rita escreveu a letra ao perder grandes amigos para a doença.
Uma curiosidade é que na primeira demo, Roberto fez a música como uma balada.
Mas, quando Rita criou a letra, tão forte, ele refez a música toda.
E o resto é história: “Vírus do amor” se tornou um dos clássicos da música e uma das preferidas dos fãs.
E por falar em preferidas, “Vítima” é outra delícia totalmente cinematográfica e paulistana. Uma homenagem ao filme “Janela Indiscreta” (1954, de Alfred Hitchcock), mas que se passa em São Paulo.
“Do meu esconderijo no milésimo andar/ Espio noite e dia sua vida secreta/ O frio de São Paulo me faz transpirar/ Sou vítima/ Da sua janela indiscreta”, canta Rita na música, que na época ficou restrita ao círculo dos fãs e não foi para as rádios.
Entretanto, 10 anos depois, se tornou um grande hit de Rita & Roberto ao virar tema de abertura da novela “A Próxima Vítima” (1995, TV Globo).
Com tamanha vocação para o cinema, o disco ganhou um especial na Globo, com requintes de grandes produções.
E “Vítima” se passa justamente entre os prédios do centro de SP.
Outra música que ganhou clipe no centrão foi “Gloria F”.
Como na letra, a personagem pula do Viaduto do Chá e se transforma numa espécie feminina de Frankenstein, Jorge Fernando (o diretor do vídeo) tratou de colocar Rita “pulando” do viaduto.
A saída foi jogar um manequim, vestido como Rita, lá de cima.
E que caia em cima de uma perua kombi, como diz a letra da música.
Curiosidades: num primeiro momento, “Gloria F” tinha uma letra diferente e iria se chamar “Sexy Frankenstein”.
E, na faixa do disco, Herbert Vianna e Paula Toller participaram do backing vocal.
E os vocais da Rita no disco são perfeitos. Potentes e cristalinos, justos para a personagem dark que ela assume em boa parte do LP.
Falando em personagens e em vocal de arrepiar, tenho que citar “Molambo souvenir”.
Rita voltou às referências da rádio, de sua infância na Vila Mariana nos anos 50, e trouxe umas pitadas de Dolores Duran e de Maysa.
A música pode ser descrita como uma bossa-rebordosa-deprê-sensual (que voz!) sobre um relacionamento amoroso que, nos dias de hoje, seria chamado de tóxico.
A produção é incrível.
Essa, aliás, é uma das faixas que conta com a percussão de Paulinho da Costa.
E com a bateria de João Barone, que também toca em “Vítima” e “Não titia”.
E a letra de “Molambo” é de uma poesia… Basta citar um trecho:
“A nossa fase amor e paz/ foi porra-louca demais”.
Uau! Aliás, esse disco todo é mais uma das provas da rara, inspirada e genial química da dupla Lee/ Carvalho nas composições.
E por falar em inspirações, os papos entre Rita e Elis Regina renderam “Noviças do vício” (que teve os jogadores de vôlei Montanaro e William no backing vocal).
Rita conta que a letra foi inspirada no deboche dos comentários de Elis sobre as cantoras da então nova geração.
Quem é que não queria ser uma mosquinha e voltar no tempo para ouvir esses papos entre as duas?
E sobre a nova geração de roqueiros?
Temos “Yê Yê Yê”, que descreve perfeitamente o sucesso do rock BR na época, quando o roqueiro brasileiro deixou de ter cara de bandido e tomou as rádios e as TVs.
E, vamos ser justos: todos desfilando nas avenidas que haviam sido desbravadas corajosamente por Rita quando o rock era maldito – para mulheres, então, nem se fala.
E a letra de “Yê Yê Yê” não podia ser mais debochada e irônica.
“Nave Maria”, música de Roberto e letra de Caetano Veloso (única do disco que não tinha letra de Rita) tem toques fantasmagóricos e extraterrenos.
Fala sobre Maria, com Jesus no seu ventre, e sobre o espiritual feminino.
A interpretação de Rita é emocionante.
A produção e o arranjo de Roberto, impecáveis.
Como em todo o disco.
Ah, uma informação curiosa é a da que antes de receberem a letra de Caetano, “Nave Maria” chegou a ter outra letra – escrita por Rita.
A fina ironia de Rita brilha nesse LP. E, como não podia deixar de ser, o autodeboche está presente na genial “Choque cultural”: “Eu entrei quente/ crente que estava abafando/ Quando tropecei no ego/ Fiquei cego/ E caí na real”.
A letra fala sobre o show no primeiro Rock in Rio, que ela não gostou de ter feito, muito pela diferença de tratamento entre artistas brasileiros e gringos.
Tanto que em um dos trechos ela repete: “Não senhor, eu não sou inferior!”.
Falando em letra, mesmo com o processo de redemocratização e o fim da ditadura, o órgão da censura continuou operando (ainda que bem menos ativo).
E “Choque cultural” acabou vetada no primeiro momento por causa da frase:
“Fui pra Machu Picchu/ Fiquei mucho putcho”. “Putcho” foi proibida e Rita não arredou o pé.
Depois de alguns apelos ao órgão, ela foi chamada a depor pessoalmente.
Entretanto, de acordo com documentos da gravadora enviados na época, encontrava-se “acamada, vítima da doença denominada catapora, adquirida de seus filhos”.
E mandou o depoimento por escrito: “a referida palavra adequa-se ao contexto jocoso da letra (…) uma brincadeira sobre o palavrão, sem dizer explicitamente”.
Com o depoimento de Rita, “Putcho” acabou liberado como “testemunho da postura dos executivos da Nova República em respeito à produção cultural brasileira”.
Por falar em “Choque cultural”, catapora e Rock in Rio, surgiram boatos de que Rita estava com leucemia.
Ela havia ficado um ano longe dos holofotes, sem aparecer na mídia, e foi com uma peruca para assinar o contrato do festival.
O disse-me-disse ficou mais forte ainda.
E pensar que a peruca era apenas para não revelar o novo corte de cabelo, que seria mostrado no palco… O fato é que a fofoca rendeu uma composição deliciosamente irônica: “Não titia”.
Com uma levada meio desenho animado, meio Broadway, a canção musicou o absurdo que aquela notícia havia se tornado.
A reedição da Universal Music nos traz dois presentes.
O primeiro é que ela é luxuosa: além de manter o encarte e o poster do original, o disco vem em vinil translúcido roxo.
O segundo é perceber que, em 2021, o disco de 1985 é atemporal.
Esse é daqueles álbuns que a gente rola inteirinho na vitrola, lado A e lado B, faixa a faixa, sem pular nenhuma.
Como se diz hoje: Rita & Roberto entregaram tudo nesse disco.
*Jornalista e editor, Guilherme Samora é estudioso do legado cultural de Rita