Álbum, que tem o mantra atemporal que o batiza e clássicos como “Banho de Espuma” e “Atlântida”, sofreu marcação cerrada da censura da ditadura militar em 1981.
“Me cansei de lero-lero/ dá licença mas eu vou sair do sério”.
É assim que Rita Lee & Roberto de Carvalho abrem o disco “Saúde”, de 1981, relançado em vinil pela Universal Music.
Sem saber, a dupla não compunha “apenas” a abertura e a faixa-título do disco: mais que um hit, “Saúde” é um hino.
Um hino àquelas horas em que precisamos mudar algo na vida. Um hino à felicidade e ao atualmente tão falado autocuidado. Mas, é justamente na contramão do lugar comum e das opiniões de sempre de “como ter um mundo melhor” que Rita se coloca. Um desacato, feliz e pra cima, à “normalidade”.
O desacato deu trabalho ao casal. Tanto que Rita & Roberto compuseram 25 músicas para conseguirem que a censura da ditadura militar liberasse oito. Ainda assim, com ressalvas. “Banho de Espuma”, mais um hit indiscutível da série “canção erótico-biográfica” da dupla Lee & Carvalho, quase não foi gravada. Na primeira versão, batizada de “Afrodite”, a censura implicou com tudo, título e letra. Diziam os censores em documento oficial: “É transposta a barreira da conveniência, com um mergulho mais fundo no erotismo”. Rita, então, mudou a letra: trocou “em qualquer posição” por “com toda disposição”; “bolinando” por “esfregando” e o título foi de “Afrodite” para “Banho de Espuma”. Passou depois de três recursos.
A criação, a gravação e a produção do disco – esse foi o primeiro que R&R produziram juntos – aconteceram enquanto Rita estava grávida de Antonio, o filho humano mais novo do casal. Digo humano pois os filhos bichos continuam chegando. E, inspirada pelo momento, Rita compôs uma das barradas no baile de “Saúde”: “Barriga da Mamãe” recebeu um baita carimbo de vetado e não teve jeito de entrar. Acabou sendo liberada apenas no disco seguinte e só depois de Rita mudar a letra.
Das proibidas e liberadas depois de recursos e processos estão: “Galinhagem”, que virou “TiTiTi”, e “Favorita”. Na última, implicaram com o verso “me sinto dentro do túnel do amor”. Essa, Rita batalhou pessoalmente com a temida Solange da censura (como era conhecida a censora-mor da época, Solange Hernandes). A ela, disse que tinha se inspirado em “Tunnel of love”, de Doris Day. Fã de Doris, Solange decidiu liberar a música, cantada no disco por Roberto.
Um ponto curioso é que “Tatibitati”, em que Rita canta que o bicho papão virou o namorado dela e que “brincar de médico é melhor que boneca”, passou batido pelos censores que não entenderam nenhuma malícia nos versos. “Tatibitati”, aliás, foi o grande hit do disco na França, com direito a compactos vendendo às dezenas de milhares e com a música tocada nas boates e nas paradas de sucesso de lá.
É desse disco também a clássica “Atlântida”. A gravação da canção – viajandona por lendas e pelo fundo do mar e a primeira com uma produção majoritariamente voltada ao eletrônico na obra do casal – é descrita por Rita como “meia hora ininterrupta” e que precisou ser editada cortando a fita e emendando com durex com a “tecnologia medieval da época”. A bateria eletrônica – que já estava presente de maneira mais tímida no disco anterior, “Lança Perfume” (1980) – aparece em boa parte do disco e chamou muita atenção na época. Teve até jornalista que disse que Rita e Roberto estavam “tirando o trabalho de bateristas humanos”. Com o passar dos anos, a bateria eletrônica e os sintetizadores foram cada vez mais incorporados às músicas no país.
Entre os músicos do disco estão Lee Marcucci, Lincoln Olivetti, Robson Jorge, Leo Gandelman, Wander Taffo, Ariovaldo, Gel, Alfredo Lynn, Picolé, Jamil Joanes, Zé Carlos, Oberdan, Serginho do Trombone, Márcio Montarroyos, Bidinho e vocais de Cidinha, Rita Kfouri e Lúcia Turnbull.
“Mutante” é de doer (de linda e de forte). O contraste é genial: a letra – uma porrada – vem com uma música etérea e com a produção de Rita & Roberto cheia de vocais fofos e de sons delicados. Se tornou uma das mais queridas, citadas e pedidas pelos fãs. Com tanta música proibida, para completar o disco, Roberto fez uma versão em inglês de “Mamãe Natureza”, lançada originalmente em 1974, no disco “Atrás do Porto Tem Uma Cidade”.
A mixagem de “Saúde” foi no Sigma Studios, em Nova York. Com a diferença de equipamento e de tecnologia, Rita contou, em entrevista na ocasião do lançamento do disco, que levaram cerca de 20 horas para mixar cada música. A masterização também foi em NY, no Sterling Sound.
O disco virou especial de fim de ano da Globo, cheio de improviso e de clipes feitos na casa de Rita e Roberto, na época no bairro do Pacaembu, em São Paulo. O programa ainda conta com um tour de ônibus pela cidade, além de algumas músicas gravadas em um show no Anhembi, também em SP. Uma delícia!
Em “Saúde”, o disco e o mantra, Rita coloca em palavras aquilo que considera uma missão de vida: fazer um monte de gente feliz. E é só colocar o disco na vitrola que a gente já sabe que ela fez, continua fazendo e ainda fará. Saúde!
*Guilherme Samora é estudioso do legado cultural de Rita Lee